Blog de Casa

UM LIVRO POR VEZ – Beije-me onde o sol não alcança

UM LIVRO POR VEZ

Alcir Santos

O título certamente dúbio, permite ilações. O texto não. É História do Brasil contada por quem conhece. BEIJE-ME ONDE O SOL NÃO ALCANÇA, romance da historiadora Mary del Priore, narra o casamento de um conde russo, Maurice Haritoff, com a herdeira, Nicota Breves, da oligarquia rural do Vale da Ribeira, Rio de Janeiro. Ele frequentador dos melhores salões de Paris; ela apenas uma moça rica da então região agrícola mais rica do Brasil; ele saudável e louco por filhos; ela tísica e estéril. A soma desses desencontros dá ensejo a um triângulo amoroso, com a negra Regina Angelorum, criada e educada por Nicota.

Respaldada em sólida bibliografia, inclusive fontes primárias, a autora produziu um livro de capítulos curtos, mas bem concatenados, inclusive com transcrições de cartas e documentos da época, traçando, assim, excelente panorâmica do Brasil do final do século XIX, época em que a monarquia agonizava, a sociedade escravocrata se findava e começava a decadência da poderosa economia cafeeira.  O texto aborda, de um ângulo diferente, os estertores daquela sociedade, dando ao leitor uma visão pelo lado de dentro, daquele momento histórico.

Enquanto narra as idas e vindas do casal,  Mary vai mostrando, em segundo plano, as questões que afligiam o Brasil da época e assim monta a panorâmica: De um lado o marido, um barão russo empobrecido, ávido por meios para sustentar sua ostentação e seus vícios, entre eles o jogo; de outro uma herdeira de cafezais, mulher fraca, doente e apaixonada; no centro a crise socioeconômica, a derrocada de uma economia construída e alicerçada no tráfico de escravos e exploração dessa mão-de-obra e de terras que já davam sinais de cansaço. O resto, somente uma questão de tempo.

A crise se agrava aos poucos. O comércio de escravos se estiola por força das restrições impostas pelos ingleses. Cai a produção e também os preços do café no mercado externo. Manter escravos já não era um bom negócio.  Com a economia em frangalhos e o país dirigido por um monarca inapetente e apático, acoimado pelos súditos de “Pedro Banana”, o resultado foi o que se viu. Abolição e República. Sobre esta — algo que até hoje ninguém explica o que tenha sido — a autora não avança. Prefere registrar o tratamento dispensado aos escravos que, sob o pálio da libertação, acabam atirados às ruas, sem qualquer preparação ou cuidados. No final a abolição teria atendido mais aos interesses dos donos que dos libertos. As consequências seriam sentidas nos séculos subsequentes.

Alcir Santos é juiz aposentado do TJBA